segunda-feira, 17 de julho de 2006

O PROJETO ÉTICO-POLÍTICO E A DENÚNCIA: GARANTIR DIREITOS DE QUEM?

Na emergência de um hospital qualquer, em uma cidade qualquer, em um estado brasileiro qualquer, em uma noite fria de inverno, em um ano qualquer, como acontece todas as noites, um morador de rua chega para ser atendido.

Em sua aparência, em sua dor, em sua saúde debilitada, se apresenta toda a crueza explicitada pelo aparente. É atirado em uma maca, ao descaso, esperando por um atendimento que nunca chega. É um morador de rua...

Suas condições de vida são precárias e seu estado de saúde mais ainda. Agoniza na maca – o morador de rua!

Um médico qualquer, destes que ignora o seu juramento profissional* – (...) “Aplicarei os regimes para o bem do doente, segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém”, se nega a atendê-lo: “Não vou ver este fedorento!”, diz.

Nesta recusa de atendimento a alguém que traz em sua vida todas as expressões da Questão Social, está posta a luta de classes de uma sociedade capitalista terceiro-mundista, representada ali pelo “homem de branco”, que exerce o poder de vida ou de morte, já que tem a qualificação técnica para salvar uma vida.

O pensamento hegemônico da classe dominante utiliza-se da infra-estrutura e da superestrutura para manter-se, utilizando como instrumento principal este próprio “homem de branco”, que ignora o seu juramento.

Mas e quem liga para um morador de rua?! Sempre está bêbado. Não tem família. Mora na rua. E incomoda...

“Não vou atender este fedorento!” – é uma frase constantemente repetida em relação a este que também tem direito ao atendimento médico, em um hospital qualquer, com uma emergência qualquer. De tão repetida, se banaliza. A escuta se torna inútil, a boca se cala, e a indiferença se institui em um espaço que deve priorizar o atendimento integral à saúde. À saúde de qualquer um.

“Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se, aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA, 1988, p.223).

Para quem este artigo garante direitos?! Com certeza, não para este morador de rua, que agoniza esperando atendimento em um hospital qualquer...

Mesmo assim, um “homem de branco” qualquer, que não respeita as premissas de sua profissão, não está sozinho no exercício de salvar vidas. E onde estão os outros? São tantas as categorias profissionais necessárias para se fazer uma emergência funcionar...

Pode-se afirmar, então, que a resignação, em um hospital qualquer, na aceitação do descaso em relação ao morador de rua que agoniza, sem se ir contra esta situação, explicita, sim, uma expressão da Questão Social. O controle social foi transformado por um grupo de profissionais pela subjetivação – campo de valores –, que vem diretamente do mecanismo ideológico que compõe a superestrutura, e pela objetivação – as relações sociais determinadas pelo modo de produção capitalista.

“A resignação é um dos mecanismos mais eficientes de controle social porque se estabelece no interior, na subjetividade do próprio sujeito social, seja ele indivíduo ou classe social. Se aceita a ordem social, suas leis, seus mecanismos, seus horizontes, como algo inevitável e que não tem como nem por que sofrer mudanças. Se existe miséria é porque assim tem que ser, é parte do destino de cada um, é a vontade de Deus” (SOUZA, HERBERT, 2004, P.35).

Então, em um hospital qualquer, as regras postas para o atendimento foram determinadas pela idéia de não se atender ao “fedorento”, contrariando-se, assim, um juramento que – este, sim – não é qualquer: “(...) se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar, ou infringir, que o contrário aconteça”*.

Em um corredor qualquer, morre alguém após horas agonizando. Seu pecado mortal: ser morador de rua e estar fedendo por falta de banho.

Ledo engano. Ele morreu porque faz parte de uma camada da população que carrega consigo a desigualdade social. São coisas que se explicitam nas relações sociais, na reificação, fetichização, mais valia, alienação e na luta de classes, que permanentemente se fazem presentes no cotidiano dos sujeitos, mantendo, assim, as relações de violência e de violação de direitos.

E aqueles dentre os “homens de branco”, que respeitam o seu “Juramento de Hipócrates”, ou dentre as outras categorias de profissionais, por que não ajudam?

Será que ignoram que, na existência de um pensamento hegemônico, é necessário o seu contraponto? Que um pensamento contra-hegemônico poderia, sim, ocupar alguns espaços de resistência em um hospital qualquer? Será que eles desconhecem que, na própria negação, está posta a confirmação de seu contrário? E que a negação de atendimento a este morador de rua fedorento e doente é uma violação constitucional?

As coisas poderiam acontecer de maneira diferente nestes hospitais quaisquer. A resignação bem que poderia se transformar em resistência. A violação, em garantia de direitos. Dessa forma, com certeza, as noites anoiteceriam de maneira bem diferente naquela cidade qualquer. Para quaisquer que fossem os profissionais, mas, principalmente, para aqueles fedorentos e maltrapilhos seres humanos. Aliás, para estes basta apenas um bom banho e uma roupa limpa.

Já para os outros...
Maria da Graça Maurer Gomes Türck


*Juramento de Hipócrates, acessado em GINECO.com.br, em 16.07.2006, às 18:30.

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