Ao participarmos do evento sobre a comemoração dos 18 anos do ECA em Arroio dos Ratos/RS, um público atento e interessado se dispôs a compartilhar o conteúdo da fala que trazia três categorias para a discussão: ato infracional, adolescência e violência familiar.
Mas por que essas categorias se articularam na fala de comemoração dos 18 anos do ECA?
Para responder a essa questão, é necessário priorizar a doutrina de proteção integral, e é nessa doutrina que vamos encontrar a apropriação de responsabilidades coletivas no ato infracional cometido por um adolescente, ou, então, as responsabilidades coletivas no risco pessoal e social que crianças e adolescentes estão sujeitos em uma sociedade capitalista excludente e perversa, que abandona à própria sorte sua herança infanto-juvenil pertencente a classes sociais que se constituem pela desigualdade social. Em um momento em que a sociedade elitizada deste país se envolve obsessivamente com segurança, em busca de grades e cadeias que os possam proteger, esta sociedade elitizada vai, ao mesmo tempo, esquecendo de sua responsabilidade na geração desta violência.
A contradição, então, vai se explicitar em um país que se caracteriza por ter uma justiça que prioriza as classes sociais, onde quem tem mais pode pagar bons advogados e por isto são beneficiados. Logo, ter uma lei como a 8.069/90, se constituindo neste país há 18 anos, incomoda quem não aceita a sua participação social na construção da violência que qualquer cidadão brasileiro está exposto. O seu conteúdo grita por esta responsabilidade coletiva na construção da violência, por isso enfrenta inimigos perigosos que não se cansam, pela argumentação, de pedir pela sua mudança. Esta é a face perversa da burguesia brasileira que a qualquer custo quer criminalizar a pobreza e brada através do argumento da defesa do “estado democrático de direito” para convencer os incautos, que soltar o mega-empresário do banco Opportunity, Daniel Dantas, se está garantindo os direitos dos brasileiros postos na Constituição Brasileira.
Logo, neste encontro, duas questões postas pelo público dão visibilidade a esta contradição que estamos tangenciando. Uma, o sigilo no trato da violência contra crianças e adolescentes. E outra, ao ser solicitado que emitíssemos opinião a respeito do que havia sido colocado na palestra proferida por um operador da justiça pela manhã: o ECA fala em direitos, e nos deveres ninguém fala?
E esta questão nos levou à seguinte reflexão colocada publicamente: quando estamos falando de adolescentes, sabemos que os deveres são conquistados pela confiança com que eles são tratados. E quando os direitos devem ser garantidos por lei, é porque são permanentemente violados por uma sociedade dividida em classes e que está sempre pronta a priorizar os direitos da burguesia.
No mínimo é curioso, ao se falar em direito, trazer a questão do dever, como se a garantia do direito fosse uma benesse. O que é o dever visto socialmente, para um adolescente que vai se constituir no mundo dos adultos? O adolescimento implica em refutar regras socialmente instituídas, consiste em consolidar sua identidade pessoal e social, em buscar um mundo melhor e viver. Adolescentes que roubam, que matam, que bebem, que se drogam, são produtos desta sociedade. De pais ausentes, de exploração do trabalho, da falta de oportunidades, de escolas excludentes, de políticas públicas ineficientes. É necessário falarmos em dever dos adolescentes? E onde fica o dever do mundo adulto em relação a suas crianças e adolescentes?
A outra questão, ao se referir ao sigilo no trato a situações que envolvem crianças e adolescentes, levou à seguinte problematização: como fazer, principalmente nas pequenas cidades, onde todos se conhecem?
Imediatamente esta questão remeteu à reflexão sobre o acolhimento dos trabalhadores/profissionais, porque se constata no cotidiano que estamos perdendo a capacidade de nos cuidarmos como profissionais. Nos lugares de trabalho não se constituem espaços para garantir a acolhida. A realidade é dura e, nestes lugares, muitos gestores não se preocupam em garantir condições de cuidados aos trabalhadores/ profissionais. Entende-se o porquê. Em uma sociedade como esta, o trabalhador tem que ser sugado pela mais-valia e coisificado pelas relações de trabalho. Logo, ocupar espaços de resistência é constituir grupos em que se propicie este cuidado que conseqüentemente refletirá na condução de um sigilo relativo. Porque ao se sentir cuidado, este trabalhador que carrega o peso de uma realidade dura, não precisará dividi-lo com suas relações afetivas e amigáveis, mas o dividirá com seus companheiros de trabalho e na discussão profissional construirá estratégias de enfrentamento a esta realidade que viola direitos.
Portanto, trazer o dever dos adolescentes e o sigilo como discussão no contexto dos 18 anos de aniversário do ECA é explicitar com propriedade o que está por trás de sua discussão: imputar aos adolescentes deveres que antes devem ser cobrados da sociedade, e a mais-valia que se desvenda pela forma com que os trabalhadores circulam as informações a respeito da violação de direitos de crianças e adolescentes em seu cotidiano profissional.
Com certeza, o ECA incomoda. E incomoda porque ele é produto da resistência, porque ele se instituiu pelo movimento social da sociedade civil organizada que o transformou em lei, o grito pelo direito. Longa vida à Lei 8.069/90! E que hoje, ainda, necessita de sustentação para consolidar suas conquistas e fazer acontecer as outras que ainda não estão consolidadas.
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