Por volta de 2003, em Porto Alegre, em um evento em que participei como palestrante, veio ao meu encontro um homem de aproximadamente uns 45 anos, vestindo uma calça jeans, uma camiseta preta, com os cabelos cumpridos, amarrados em um “rabo de cavalo”. Me olhou, sorriu, me cumprimentou e disse: Graça, não lembras de mim?
Olhei interrogativamente e ele disse: No final do evento te direi quem eu sou!
Fiquei puxando pela memória. Quem seria este personagem, que com certeza carregava em sua experiência de vida, com muita intensidade, um encontro que deveria ter sido muito significativo.
Ao final do evento, ele se aproximou e disse: Lembrou?
E eu, mais do que depressa: Com certeza!
E, como um filme, uma das experiências mais marcantes que vivi profissionalmente me dominou integralmente.
Por que das mais marcantes?
Porque esta experiência me confrontou com minha subjetividade e com as minhas contradições.
No Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre (1995), de posse do processo de solicitação de termo de guarda de um tio em relação a seus sobrinhos, me dirigi à recepção e chamei pelo nome do então responsável. Levantou uma mulher, com os cabelos longos e soltos, de saia, sandália, unhas compridas e pintadas e um vozeirão masculino: Sou eu, boa tarde!
Naquele exato momento, nos segundos que me separavam da resposta, eu vivi com intensidade todos os meus preconceitos, minhas dúvidas e meus receios.
Nunca foi tão difícil retomar o Projeto Ético-Político em minhas mãos e me dar conta que ao ter feito esta escolha, naqueles poucos segundos, havia enfrentado e superado o pensamento da classe dominante e ocupado o espaço de resistência na garantia de direitos.
"Podes me acompanhar? Oito anos depois do nosso encontro no Juizado, em 2003, eu recebi o retorno!
Graça, eu quero te dizer que tu para mim, és inesquecível. Nunca, ninguém tinha me tratado com tanta dignidade. Queres saber como estão, hoje, os meus sobrinhos?"
E seguimos caminhando sob o céu cheio de estrelas, pelas ruas de Porto Alegre.
E, naquele momento, tive fortemente a certeza do lugar que eu ocupo, a quem sirvo e qual o meu compromisso como pessoa e como profissional.
Me apropriei, mais ainda, de que o cotidiano profissional em que nós assistentes sociais transitamos, a partir da Questão Social como nosso objeto, é um cotidiano de enfrentamento permanente em relação aos nossos próprios preconceitos, à nossa própria classe social e ao nosso Projeto Ético-Político.
Neste espaço, ouso inferir que não existe uma profissão que viva tão intensamente a contradição no cotidiano, em que as nossas vivências pessoais, nossos valores e princípios éticos não estejam permanentemente sendo testados.
E a forma como lidamos com estas contradições retornam ao contexto profissional e atingem diretamente ao usuário, sujeito de nossa intervenção. São nestes momentos que se diferencia o discurso do compromisso!
Nenhum comentário:
Postar um comentário